A alma gémea
A alma Gémea
Nenhum sonho custa tanto a abandonar como o sonho de ter uma
alma gémea, nem que seja noutro canto do mundo, uma alma tão perto da nossa
como a vida. O que é a alma? É o que resta depois de tudo o que fizemos e
dissemos. Podemos traí-la e contrariá-la, mesmo sem saber, porque nunca podemos
conhecê-la. Só através duma alma gémea. Fácil dizer. Agora como é que consigo
falar? As almas gémeas quase nunca se encontram, mas, quando se encontram, abraçam-se.
Naqueles momentos em que alguém diz uma coisa, que nunca ouvimos, mas que
reconhecemos não sei de onde. E em que mergulhamos sem querer, como se
estivéssemos a visitar uma verdade que desconfiávamos existir, de onde
desconfiamos ter vindo, mas aonde nunca tínhamos conseguido voltar.
O coração sente-se. A alma pressente-se. O coração anda aos saltos dentro do
peito, a soluçar como um doido, tão óbvio que chega a chatear. Mas a alma é uma
rocha branca onde estão riscados os sinais indecifráveis da nossa existência.
Não muda, não se mostra, não se dá a conhecer. O coração ama. Mas é na alma que
o amor mora. Todos os amores. Toda a vida. A alma deixa o coração à solta, como tonto que ele é, e despreocupa-se e
desprende-se do corpo, porque tem mais que fazer. E o que faz a alma? Mandar
escondidamente na parte da nossa vida que não tem expressão material ou física.
Está mal dito, mas está certo, porque estas coisas não se podem sequer dizer.
O quem e o quê não lhe interessam. A alma não deseja, não tem saudades, não
sofre nem se ri; a alma decide o que o coração e a razão podem decidir. A alma
não é uma essência ou um espírito; é a fonte, o repositório, a configuração
interior. Expressões horríveis, onde as palavras escorregam para se
encontrarem. Só resta repetir. A alma é de tal maneira que é aquilo, exactamente,
de que não se pode falar. A não ser que se encontre uma alma gémea. Gémea não é igual. É parecida. Não é
um espelho. É uma janela. Não é um reflexo. É uma refracção.
(...) O desejo de encontrar uma alma gémea não é o desejo de reafirmarmos a
unicidade da nossa existência através de outro que é igual a nós. É
precisamente o contrário. É poder descansar dessa demanda. No fundo, todos nós
duvidamos que tenhamos uma alma. Senão não falávamos tanto dela. Os melhores
ainda são aqueles que a deixam a Deus. Uma alma gémea é a prova que não estamos sozinhos. Ou seja: é a prova de que a
alma existe. Não faz nem diz o mesmo que fazemos e dizemos — mas tem uma forma
de fazer e dizer tão parecida com a nossa, que deixa de interessar o que é dito
e feito. Uma alma gémea faz curto-circuito com os fusíveis corpo/coração/razão.
Não é o «quê» — é o «porquê». O estado normal de duas almas gémeas é o
silêncio. Não é o «não ser preciso falar» - é outra forma de falar, que
consiste numa alma descansar na outra. Não é a paz dos amantes nem a
cumplicidade muda dos amigos. Não precisa de amor nem de amizade para se
entender. As almas acharam-se. Não têm passado. Não se esforçaram. Estão. É
essa a maior paz do mundo. Como é que um ninho pode ser ninho doutro ninho?
Duas almas gémeas podem ser.
Como é que se reconhece a alma gémea? No abraço. O coração pára de bater. A
existência é interrompida. No abraço do irmão, do amigo, da amante, há
sensação, do corpo, do tempo, do coração. Há sempre a noção dum gesto
posterior. No abraço de duas almas gémeas, mesmo quando se amam, o abraço
parece o fim. Uma pessoa sente-se, ao mesmo tempo, protegida e protectora. E a
paz é inteira - nenhum outro gesto, nenhuma outra palavra, é precisa para a
completar. Pode passar a vida toda. Não importa.
Quando duas almas gémeas se abraçam, sente-se o alívio imenso de não ter de
viver. Não há necessidade, nem desejo, nem pensamento. A sensação é de sermos
uma alma no ar que reencontrou a sua casa, que voltou finalmente ao seu lugar,
como se o outro corpo fosse o nosso que perdêramos desde a nascença.
Miguel Esteves Cardoso, in 'Explicações de Português'Tema(s): Alma
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